Sobre o conhecimento de fenômenos meteorológicos como grandes precipitações, ondas de frio, nevascas, ou secas fortes, ocorridas no Rio Grande do Sul durante o século XIX, a literatura historiográfica gaúcha tem poucos estudos. Também a análise de como era, naquele século, o ambiente natural aqui no estado ainda carece de um estudo sistematizado.
Apenas registros pontuais, feitos na época, principalmente por viajantes, são mais encontrados. Dentro da produção científica gaúcha as ciências, sobre este tema, surgiram ou tornaram-se conhecidas só a partir do inicio do século XX. A meteorologia, por exemplo, é uma prática que oficialmente começou em 1909 com a fundação do Observatório da Escola de Engenharia de Porto Alegre, pouco sabemos como era o clima gaúcho nos séculos anteriores.
Entre os diversos registros documentais de eventos extremos ocorridos no Rio Grande do Sul ao longo do século XIX, a maioria ainda não descrita na literatura, consta que em 1878 houve intensas chuvas na região que hoje corresponde aproximadamente ao município do Rio Grande, havendo registro de grandes alterações ambientais na localidade do Taim, onde estão as lagoas Caiuvá e Flores .
A influencia da enchente de 1878.
Sobre esta grande enchente na literatura aparece uma detalhada descrição e as conseqüências no ecossistema, em especial das duas lagoas citadas, e na comunidade local.
T. F. Mello faz a seguinte narrativa dos efeitos destas chuvas:
Em 14 de novembro de 1878, uma chuva torrencial, verdadeira avalanche, desabou sobre o districto do Tahim, no município do Rio Grande; as águas das lagoas Flores e Cayuvá cresceram de maneira descommunal, attingindo em poucas horas a 4 metros acima do nível ordinário, ligando-as em alguns pontos com a Mirim e cobrindo quase todo o terreno elevado que as divide.
Algumas famílias moradoras nas proximidades foram victimas da innundação, entre elas a do cidadão José Bernardes Cardoso, composta de esposa e 8 filhos menores, que foi colhida pelas águas e desappareceram na voragem.
Grande quantidade de gado vaccum, cavalar e lanígero foi arrastada pelo turbilhão, que rolava campo fora com medonha violencia, destruindo e arrancando, arrasando tudo que encontrava em sua passagem devastadora.
Para esse mesmo ano, R. Brasiliano também cita uma grande chuvarada, que produziu uma enchente no arroio Taim causando desmoronamento e obstrução do sangradouro.
Mello comenta a grande alteração da paisagem local, após este acontecimento. Segundo este autor as lagoas Caiuvá e Flores eram ligadas a lagoa Mirim pelo arroio Taim, que funcionava como um escoadouro natural. Este arroio iniciava na parte ocidental da lagoa das Flores e percorria 6 km até a lagoa Mirim, alcançando esta nas coordenadas de 32º de latitude e 9º 28´00 de longitude (coordenadas do Rio de Janeiro).
As margens deste arroio eram guarnecidas por uma mata, formada por arbustos e pequenas árvores, e o entorno cercado por campos, que na época eram usados para a prática da pecuária. Em condições normais a profundidade máxima do Taim era de 2 m, durante o período de cheias o nível da água subia de 4 a 5 m, nestas condições iates percorriam até 5 km além da foz.
O historiador João Borges Fortes mostra, na carta de Paes Leme, uma clara citação deste arroio:
Examinando a carta de 1737 se evidencia que a costa oriental da Lagoa Mirim devia ser conhecida dos espanhóis e que Paes a explorou. Verifica-se isso: primeiro, de sua ordem para que embarcações apropriadas subissem o sangradouro de São Gonçalo, e fossem encontra-lo, provavelmente, no passo da Borda da Mirim, dentro do posto avançado do arroio Taim, a que se encontra detalhada alusão na carta ao vice-rei
O naturalista francês Saint-Hilaire quando passou pela região em 1821, fez a seguinte descrição da paisagem:
Comecei a viajar pela península que separa a lagoa Mirim do mar e que tem a mesma direção que sua homóloga existente entre lagoa dos Patos e oceano
[...] Durante alguns instantes só pisamos areais, em seguida caminhamos sobre um gramado raso; contudo, principalmente à direita, percebemos ao longe grandes areais.
Apesar da igualdade do terreno o aspecto do campo nada tem de monótono. Grande número de cavalos e bovinos pastando [...] Abaixo do Caiová o istmo começa a estreitar-se [...] A uma légua de Capilha acha-se o lugar denominado Tahim [...] Para completar essa pequena descrição devo acrescentar que ao chegar à guarda de Tahim atravessei um regato denominado Arroio Tahim, cujas nascentes estão na parte meridional do banhado setentrional do lago do [1]Albardão e que estabelece comunicação entre esse lago e a Mirim. Pelas informações que os moradores forneceram a Saint-Hilaire, a lagoa das Flores não foi citada, provavelmente era vista como parte de um sistema maior.
Dreyz, viajou muito, na primeira metade do século XIX, pela então província do Rio Grande do Sul. Numa passagem assim ele descreve a região do arroio Taim:
[...] por isso que, da parte oriental não aparece água corrente alguma que se pudesse contar entre os rios, nem os afluentes das lagoas, pois não se pode chamar rios a alguns esgotadouros acidentais das águas estagnadas, como o Taim, na Lagoa Mirim, o qual não é senão o escoadouro da [2]Lagoa Saquarema. [...] a península do sul está ainda ocupada, no seu centro, pela já citada Lagoa Saquarema, que se prolonga na direção de Norte a Sul, sendo que fora das mesmas circunstancias físicas, ela não passa de uma continuidade de pântanos, comunicando-se entre si por parte mais ou menos inundadas, ao mesmo tempo que se acha em relação com a lagoa pelo arroio Taim.. A maneira como Dreyz se refere à lagoa Mangueira, pode significar duas coisas, ou a cartografia da época não havia detalhado a hidrografia, mostrando as lagoas Caiuvá e Flores como corpos d´água distintos, ou o ecossistema local era diferente.
Na obra deste autor podemos ver um mapa da Província do Rio Grande do Sul de 1839, onde aparece a lagoa Mangueira como “um sistema continuo” ligada, ao norte, à lagoa Mirim pelo arroio Taim.
Azambuja define o Taim, como um canal de descarga entre a lagoa das Flores e a lagoa Mirim. Enfatiza ele a influencia que este arroio tinha, na hidrografia local, inclusive em relação à lagoa Mangueira. Ele cita a obra “do historiador Resende Silva”, autor de um trabalho especializado sobre a região, o qual diz que nos tempos coloniais o leito deste arroio servia de limite oriental dos campos neutrais.
Segundo Melo e Resende Silva, após a grande enchente de 1878 a paisagem local começou uma grande transformação. Relatam eles que no dia 15 de novembro um forte vento de SO represou as águas das lagoas, o nível das águas baixaram devido à ação conjunta do vento e da insolação. No dia 18 podia-se observar grande quantidade de areia, troncos e diversos detritos que tinham obstruído a entrada do escoadouro isolando o canal da lagoa. Em aproximadamente 8 anos o arroio Taim ficou totalmente soterrado.
Após o soterramento do arroio grandes dunas com até 16 m de altura surgiram no local, os campos do entorno converteram-se num cinturão, com um perímetro entre 6 e 8 km, de banhados. Surgiram dois pequenos córregos um denominado pelos moradores, da localidade do Taim, de Figueira Torta o outro, denominado Aguirre, surgiu à oeste do rincão do Tigre. Estes dois córregos, devido ao pequeno tamanho e a topografia não substituíram, como canal de escoamento, o arroio Taim limitando-se a drenar parcialmente as águas do banhado.
Esta enchente não foi um fato isolado, a documentação da época mostra o registro, para o mesmo ano, de grandes inundações em Porto Alegre, e outras partes do Rio Grande do Sul.
As causas das enchentes de 1878.
O El Niño é apontado como responsável por um período de precipitações, no Rio Grande do Sul, acima da média do estado. No modelo, em nível hemisférico, é aceito que no período da manifestação do fenômeno existe uma relação entre intensas chuvas na costa oeste da América do Sul, em especial no Pacífico equatorial, secas fortes no nordeste brasileiro e intensas chuvas no Rio Grande do Sul,.
O ano de 1878 está de acordo com este modelo, no qual houve a ocorrência de intensas chuvas no Perú, uma forte seca no nordeste brasileiro, e a ocorrência de fortes chuvas, seguidas de inundações, em diversas partes do Rio Grande do Sul. De acordo com o quadro de registros históricos (CPC/NCEP/NOAA, 2001) o ano de 1878 foi de El Niño forte.
Nos anos de El Niño o período mais intenso da manifestação do fenômeno, no Rio Grande do Sul, ocorre entre outubro e novembro estando portanto de acordo com os dados históricos apresentados neste artigo.
[1]Designação que os portugueses davam para a lagoa Mangueira.
[2] Palavra derivada de Squarembó, designação que os indígenas davam à lagoa Mangueira.