Mel da lichiguana.
No
passeio da véspera havíamos passado junto a uma caixa de abelhas selvagens,
suspensa, cerca de pé e meio da terra, a um ramo de arbusto, era quase oval, do
tamanho de uma cabeça e de uma consistência semelhante à das colméias
européias. Matias e José Mariano tinham ido destruir essa colméia para tirar o
mel.
Comemos
os três desse mel. Fui segundo Jose Mariano, o que mais comeu, e avalio não ter
tomado quantidade a duas colheradas. Senti logo uma dor de estômago, mais
incômoda que forte e deitei-me em baixo da carruagem, com a cabeça apoiada
sobre uma pasta do herbário, caindo em uma espécie de sonolência, durante a
qual senti-me transportado aos espaços celestiais, ouvindo uma voz que gritava:
“Ele não se perderá, há um anjo que o protege”. Nesse instante minha irmã veio buscar-me pela
mão. Achava-se vestida de branco, com uma faixa ao redor do corpo e sua
fisionomia aparência de inexpressável calma e serenidade. Tomou-me pela mão,
sem me olhar e sem proferir uma só palavra, e conduziu-me perante o tribunal de
Deus. Lembrei-me das últimas palavras da parábola do Bom Pastor e acordei.
Levantei-me,
mas senti tal fraqueza que não pude dar mais de cinquenta passos; voltei para debaixo da carruagem e
senti-me quase instantaneamente com o rosto banhado em lágrimas, atribuíveis à
emoção causada pelo sonho acima exposto. Envergonhei-me de tal fraqueza e
pus-me a sorrir, mas apesar de tudo, esse sorriso prolongou-se e tornou-se
convulsivo e cobri a cabeça para que meus camaradas não notassem. Contudo, tive
ainda forças para dar algumas ordens ao Firmiano; entrementes José Mariano
chegou. Disse – me com ar gaiato, mas um pouco perturbado que se achava
embriagado e que há uma meia hora corria pela mata. Assentou –se então sob a
carruagem apoiando-se sobre uma roda, convidando-me a tomar lugar. Com
dificuldade até lá ; senti-me extremamente fraco e apoiei a cabeça sobre os
ombros de José Mariano. Foi então que começou a mais cruel agonia. Uma espessa
nuvem escureceu minhas vistas e não me foi possível distinguir senão o do céu
de mistura com algumas nuvens e as sombras dos meus empregados. Cai no ultimo
grau de fraqueza e sem sofrer muito
experimentei contudo experimentei contudo todas as angustias da morte. Todavia
conservei perfeitamente a lembrança de tudo que vi e entendi; uma narrativa
feita por Laruotte está conforme o que recordo.
Há
cerca de dois anos, disse eu a José Mariano, que nós fechamos os olhos de
nossos amigo, ide hoje assistir ao meu ultimo suspiro. – Estou bem mal também,
respondeu-me ele, vamos morrer juntos nesse deserto. Pedi vinagre concentrado e
aspirei-o varias vezes com força, sentindo-me um pouco reanimado por alguns
segundos, retornando logo ao abatimento. Laruotte achava-se ausente quando
comecei a sentir-me mal, mas mandei chamá-lo e ele cuidou-me com desvelo. Tinha
ao redor de min esse empregado, Firmiano o índio peão, Matias e José Firmiano;
e estes dois também muito molestados.
Meus
amigos, disse-lhes em português, sinto que vou expirar neste deserto, longe da
minha família e de meus pais; as sombras da morte rodeiam-me; vou juntar-me a
esses anjos que me incitam a segui-los. Não sou mau, nunca fiz mal a ninguém,
minhas faltas são perante Deus, que me perdoará, espero-o, ou talvez me punirá.
Uma luta cruel mas de curta duração
passou-se pela minha alma. Minha mãe e meu sobrinho não precisam de min, mas
esses pobre Firmino que atirei nestes desertos, que será dele quando eu não
mais existir? Matias recomenda-o ao Conde de Figueira; que ele nunca seja
escravo de ninguém. Quis afastá-lo, mas em seguida chamei-o para junto de min.
e vi algumas lágrimas correr de seus olhos. “Matias, perdoo-te o mal que me
fizeste Lauroette, sabeis que minhas coleções pertencem ao Museu de Historia
Natural; meus manuscritos devem ser remetidos a minha família.
O
sonho que havia tido, logo de inicio dessa crise, apresentava-se sem cessar em
meu cérebro e senti-me possuído de uma força invisível para contá-lo.
As
palavras que venho relatando não foram ditas seguidamente, mas com longas
pausas, de modo entrecortado. Quis falar Frances mas a memória somente
fornecia-me vocábulos portugueses, e mesmo ao Laruotte falei quase só em
português.
Ao
começar a cair nesse estado esquisito experimentei beber vinagre e água, mas
não melhorando pedi água morna para ver se consegui expelir o mel que tanto mal
causara. Notei que , se engolir, a nuvem que me toldava a vista desaparecia por
instantes. Pus-me a beber grandes goles, sem interrupção. Segundo me disse Lauoroette
devo ter bebido dezesseis pintas.
Pedi-lhe sem cessar um vomitivo;
ele procurou em todas as malas, mas atordoado pelo que se passava não conseguia
encontrar. Estando eu debaixo da carruagem não podia vê-lo, mas parecia estar a
enxergá-lo e censurei sua lentidão, sendo essa a única falta que cometid
durante tal agonia.
Nesse
ínterim Jose Mariano levantou-se sem que eu desse por isso, mas logo meus
ouvidos foram atingidos por seus gritos. No momento achava-me melhor; a nuvem
que me escurecia os olhos dissipou-se um pouco e nenhum dos movimentos desse
criado me escapou. Rasgava as vestes com furor ficando inteiramente nu; tomou
uma espingarda e deu um tiro; Matias arrebatou-lhe a arma e ele pos-se a correr
pelo campo, chamando em seu socorro, com todas as forças, Nossa Senhora
Aparecida, pedindo suas armas, gritando que todo o campo estava incendiando, e
que as malas iam ficar queimadas e que era preciso fechá-las. O peão índio
tentou segura-lo mas vendo que não seria bem sucedido o deixou.
Até
aqui Matias não tinha cessado de me dispensar cuidados, mas ele, também começou
a sentir muito mal. Entretanto como conseguia vomitar logo e como era de
compleição robusta retomou prontamente suas forças. Laruoette disse - me depois
que sua figura estivera horrenda e de extrema palidez. Irei disse ele
repentinamente, dar aviso à guarda e já era tarde. Montou a cavalo e pôs-se a
galopar no campo, mas logo lourette viu-o cair. Levantar-se e pôr-se de novo a
galopar, mas logo tornou a cair e algumas horas depois foi encontrado
profundamente adormecido no local onde caíra por último.
Vi-me,
ainda semimorto, com um homen furioso e duas crianças para cuidar de min, pois
Firmiano e Laruoette não podem ser
considerados como homens. José Mariano deu-me as maiores preocupações. No mesmo
instante pensei na possibilidade de sermos atacados pelos espanhóis e essa
lembrança transtornou-me as idéias.
Quando
estive pior pareceu-me ver o cão do guia que me acompanhou até ontem.
Perguntando a Larouette e firmiano se isso tinha sido uma visão responderam-me
que não, por isso veio-me a esperança do retorno de Joaquim e do novo guia;
isso reanimou-me e não cessei de perguntar-lhe se não avistaram alguém
chegando.
Entrementes
José Mariano veio assentar-se junto de min. Estava mais calmo e tinha envolvido
qualquer coisa ao redor da cintura. “Patrão, disse-me ele, daí-me água, estou
numa fogueira”.
.... Vêde, meu amigo estou doente, mas o regato
fica próximo daqui “.
“....Dai-me o braço, meu patrão,
há tanto tempo estou convosco e sempre fui um empregado fiel”.
Tomei-lhe a mão e disse algumas
palavras tranqüilizadoras.
Enquanto
isso a água quente, que eu tomara em prodigiosa quantidade, terminou por fazer
efeito. Vomitei, com muita água, os alimentos ingeridos pela manhã. Senti-me
muito melhor, distinguindo claramente a carruagem, as pastagens e as árvores; a
nuvem não encobria mais os objetos, algumas vezes ela reaparecia, mas sumia
logo. Vi que estava quase nu e tive vergonha. Olhei as mãos e vi com satisfação
que elas mexiam. O estado em que vi José Mariano tranquilizou-me apesar de ficar cruelmente atormentado de ver
seu sofrimento e acreditei não poder mais vê-lo completamente bom de jizo.
Um
segundo vomito trouxe-me mais alivio que o primeiro. Distingui os objetos mais
claramente ainda e pude, com agrado, falar Frances e português, minhas idéias
tornaram-se mais concisas e indiquei claramente a Lauruotte onde se ahcava o vomitivo. Tomeio por 3 vezes
e acabei por lançar torrente de água, todos os alimentos que ingerira. Até o
momento em que deite fora a terceira porção de vomitivo experimentava uma espécie
de prazer em tomar água quente, mas daí por diante ela começou a repugnar-me e
deixei de bebê-la.
Durante
alguns instantes senti dormência nos dedos, mas isso teve curta duração. A
nuvem desapareceu completamente, minhas idéias tornaram-se claras e pouco a
pouco, senti-me curado. Mandei faze chá e tomei três xícaras. Levantei-me
passeei, corri e fui o primeiro a rir de tudo o que se passava.
Episódio ocorrido as margens do arroio Guarapuitã.
Trecho do livro Viagem ao Rio Grande do Sul.
Auguste de Saint Hilaire.
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