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sábado, setembro 17, 2016

Mel da lichiguana.
                No passeio da véspera havíamos passado junto a uma caixa de abelhas selvagens, suspensa, cerca de pé e meio da terra, a um ramo de arbusto, era quase oval, do tamanho de uma cabeça e de uma consistência semelhante à das colméias européias. Matias e José Mariano tinham ido destruir essa colméia para tirar o mel.
                Comemos os três desse mel. Fui segundo Jose Mariano, o que mais comeu, e avalio não ter tomado quantidade a duas colheradas. Senti logo uma dor de estômago, mais incômoda que forte e deitei-me em baixo da carruagem, com a cabeça apoiada sobre uma pasta do herbário, caindo em uma espécie de sonolência, durante a qual senti-me transportado aos espaços celestiais, ouvindo uma voz que gritava: “Ele não se perderá, há um anjo que o protege”.  Nesse instante minha irmã veio buscar-me pela mão. Achava-se vestida de branco, com uma faixa ao redor do corpo e sua fisionomia aparência de inexpressável calma e serenidade. Tomou-me pela mão, sem me olhar e sem proferir uma só palavra, e conduziu-me perante o tribunal de Deus. Lembrei-me das últimas palavras da parábola do Bom Pastor e acordei.
                Levantei-me, mas senti tal fraqueza que não pude dar mais de cinquenta  passos; voltei para debaixo da carruagem e senti-me quase instantaneamente com o rosto banhado em lágrimas, atribuíveis à emoção causada pelo sonho acima exposto. Envergonhei-me de tal fraqueza e pus-me a sorrir, mas apesar de tudo, esse sorriso prolongou-se e tornou-se convulsivo e cobri a cabeça para que meus camaradas não notassem. Contudo, tive ainda forças para dar algumas ordens ao Firmiano; entrementes José Mariano chegou. Disse – me com ar gaiato, mas um pouco perturbado que se achava embriagado e que há uma meia hora corria pela mata. Assentou –se então sob a carruagem apoiando-se sobre uma roda, convidando-me a tomar lugar. Com dificuldade até lá ; senti-me extremamente fraco e apoiei a cabeça sobre os ombros de José Mariano. Foi então que começou a mais cruel agonia. Uma espessa nuvem escureceu minhas vistas e não me foi possível distinguir senão o do céu de mistura com algumas nuvens e as sombras dos meus empregados. Cai no ultimo grau  de fraqueza e sem sofrer muito experimentei contudo experimentei contudo todas as angustias da morte. Todavia conservei perfeitamente a lembrança de tudo que vi e entendi; uma narrativa feita por Laruotte está conforme o que recordo.
                Há cerca de dois anos, disse eu a José Mariano, que nós fechamos os olhos de nossos amigo, ide hoje assistir ao meu ultimo suspiro. – Estou bem mal também, respondeu-me ele, vamos morrer juntos nesse deserto. Pedi vinagre concentrado e aspirei-o varias vezes com força, sentindo-me um pouco reanimado por alguns segundos, retornando logo ao abatimento. Laruotte achava-se ausente quando comecei a sentir-me mal, mas mandei chamá-lo e ele cuidou-me com desvelo. Tinha ao redor de min esse empregado, Firmiano o índio peão, Matias e José Firmiano; e estes dois também muito molestados.
                Meus amigos, disse-lhes em português, sinto que vou expirar neste deserto, longe da minha família e de meus pais; as sombras da morte rodeiam-me; vou juntar-me a esses anjos que me incitam a segui-los. Não sou mau, nunca fiz mal a ninguém, minhas faltas são perante Deus, que me perdoará, espero-o, ou talvez me punirá. Uma luta cruel  mas de curta duração passou-se pela minha alma. Minha mãe e meu sobrinho não precisam de min, mas esses pobre Firmino que atirei nestes desertos, que será dele quando eu não mais existir? Matias recomenda-o ao Conde de Figueira; que ele nunca seja escravo de ninguém. Quis afastá-lo, mas em seguida chamei-o para junto de min. e vi algumas lágrimas correr de seus olhos. “Matias, perdoo-te o mal que me fizeste Lauroette, sabeis que minhas coleções pertencem ao Museu de Historia Natural; meus manuscritos devem ser remetidos a minha família.
                O sonho que havia tido, logo de inicio dessa crise, apresentava-se sem cessar em meu cérebro e senti-me possuído de uma força invisível para contá-lo.
                As palavras que venho relatando não foram ditas seguidamente, mas com longas pausas, de modo entrecortado. Quis falar Frances mas a memória somente fornecia-me vocábulos portugueses, e mesmo ao Laruotte falei quase só em português.
                Ao começar a cair nesse estado esquisito experimentei beber vinagre e água, mas não melhorando pedi água morna para ver se consegui expelir o mel que tanto mal causara. Notei que , se engolir, a nuvem que me toldava a vista desaparecia por instantes. Pus-me a beber grandes goles, sem interrupção. Segundo me disse Lauoroette devo ter bebido dezesseis pintas.
Pedi-lhe sem cessar um vomitivo; ele procurou em todas as malas, mas atordoado pelo que se passava não conseguia encontrar. Estando eu debaixo da carruagem não podia vê-lo, mas parecia estar a enxergá-lo e censurei sua lentidão, sendo essa a única falta que cometid durante tal agonia.    
                Nesse ínterim Jose Mariano levantou-se sem que eu desse por isso, mas logo meus ouvidos foram atingidos por seus gritos. No momento achava-me melhor; a nuvem que me escurecia os olhos dissipou-se um pouco e nenhum dos movimentos desse criado me escapou. Rasgava as vestes com furor ficando inteiramente nu; tomou uma espingarda e deu um tiro; Matias arrebatou-lhe a arma e ele pos-se a correr pelo campo, chamando em seu socorro, com todas as forças, Nossa Senhora Aparecida, pedindo suas armas, gritando que todo o campo estava incendiando, e que as malas iam ficar queimadas e que era preciso fechá-las. O peão índio tentou segura-lo mas vendo que não seria bem sucedido o deixou.
                Até aqui Matias não tinha cessado de me dispensar cuidados, mas ele, também começou a sentir muito mal. Entretanto como conseguia vomitar logo e como era de compleição robusta retomou prontamente suas forças. Laruoette disse - me depois que sua figura estivera horrenda e de extrema palidez. Irei disse ele repentinamente, dar aviso à guarda e já era tarde. Montou a cavalo e pôs-se a galopar no campo, mas logo lourette viu-o cair. Levantar-se e pôr-se de novo a galopar, mas logo tornou a cair e algumas horas depois foi encontrado profundamente adormecido no local onde caíra por último.
                Vi-me, ainda semimorto, com um homen furioso e duas crianças para cuidar de min, pois Firmiano  e Laruoette não podem ser considerados como homens. José Mariano deu-me as maiores preocupações. No mesmo instante pensei na possibilidade de sermos atacados pelos espanhóis e essa lembrança transtornou-me as idéias.
                Quando estive pior pareceu-me ver o cão do guia que me acompanhou até ontem. Perguntando a Larouette e firmiano se isso tinha sido uma visão responderam-me que não, por isso veio-me a esperança do retorno de Joaquim e do novo guia; isso reanimou-me e não cessei de perguntar-lhe se não avistaram alguém chegando.
                Entrementes José Mariano veio assentar-se junto de min. Estava mais calmo e tinha envolvido qualquer coisa ao redor da cintura. “Patrão, disse-me ele, daí-me água, estou numa fogueira”.
....  Vêde, meu amigo estou doente, mas o regato fica próximo daqui “.
“....Dai-me o braço, meu patrão, há tanto tempo estou convosco e sempre fui um empregado fiel”.
Tomei-lhe a mão e disse algumas palavras tranqüilizadoras.
                Enquanto isso a água quente, que eu tomara em prodigiosa quantidade, terminou por fazer efeito. Vomitei, com muita água, os alimentos ingeridos pela manhã. Senti-me muito melhor, distinguindo claramente a carruagem, as pastagens e as árvores; a nuvem não encobria mais os objetos, algumas vezes ela reaparecia, mas sumia logo. Vi que estava quase nu e tive vergonha. Olhei as mãos e vi com satisfação que elas mexiam. O estado em que vi José Mariano tranquilizou-me  apesar de ficar cruelmente atormentado de ver seu sofrimento e acreditei não poder mais vê-lo completamente bom de jizo.
                Um segundo vomito trouxe-me mais alivio que o primeiro. Distingui os objetos mais claramente ainda e pude, com agrado, falar Frances e português, minhas idéias tornaram-se mais concisas e indiquei claramente a Lauruotte  onde se ahcava o vomitivo. Tomeio por 3 vezes e acabei por lançar torrente de água, todos os alimentos que ingerira. Até o momento em que deite fora a terceira porção de vomitivo experimentava uma espécie de prazer em tomar água quente, mas daí por diante ela começou a repugnar-me e deixei de bebê-la.
                Durante alguns instantes senti dormência nos dedos, mas isso teve curta duração. A nuvem desapareceu completamente, minhas idéias tornaram-se claras e pouco a pouco, senti-me curado. Mandei faze chá e tomei três xícaras. Levantei-me passeei, corri e fui o primeiro a rir de tudo o que se passava.
Episódio ocorrido as margens do arroio Guarapuitã.
Trecho do livro Viagem ao Rio Grande do Sul.

Auguste de Saint Hilaire.

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